quarta-feira, 30 de outubro de 2013

003: Obrigado, Lou.


Difícil encontrar palavras. 

Conheci o som do Lou Reed mais ou menos aos quinze anos, numa das minhas várias passagens por um lugar que havia estreado há pouco no Recife: a Livraria Cultura. Um lugar grande, repleto de cds, filmes e livros... Tamanha imensidão foi motivo de assombro e de encanto pra mim. Lembro que soube da existência da loja através de uma pequena entrevista num programa de rádio... Passava tardes e mais tardes naquele lugar, extasiado, desejando ter tudo ou, no mínimo, ansioso por explorar tudo. Sonhava com o que iria fazer depois das aulas: ficar a tardinha inteira lá.

Um dia, numa dessas visitas, por impulso e por ânsia de descobrir sons, eu catei um The Very Best na estante da letra V do departamento musical, no térreo... Pus os fones, passei o código de barras do disco numa maquininha a laser e fui conferir finalmente do que se tratava o Velvet Underground. Trinta segundinhos de cada faixa. 

Eu já tinha ouvido falar da banda, do Lou... mas muito, muito pouco. Assistia regularmente a um ou dois programas da MTV (um deles era o Supernova) e lembrava de algumas citações; também recordava de passagens no Alto Falante e lembrava de uma rápida e incompleta audição na Rádio Cidade. Eu, um garoto que ganhava R$ 0,10 por dia, mas que fazia questão de guardar e convencer minha mãe a tentar me ajudar a comprar fitas K7 todo santo sábado... só pra gravar o programa de Música Clássica da Universitária FM; eu, que fui apresentado ao Rock por um primo mais velho, aos quatro, e que me apaixonei pra sempre; eu, que só conhecia razoavelmente bem a relevância dos Beatles, do Who, dos Stones... mas que nunca tinha ouvido de fato nenhum disco e nenhuma canção deles... eu, um apaixonado imutável por História e Música, um "velho!" em corpo de pivete, um faminto... fui atingido em cheio, naquela tarde, pelo instrumental do Velvet e pela voz de Reed. 

Eu tinha conseguido, afinal, entender algo mais sobre Black Sabbath, Led Zeppelin, Deep Purple, nas minhas pesquisas... Eu tinha conseguido descobrir bandas interessantíssimas como Traffic... Trinta, quarenta segundos, um minuto... Para alguém que tinha sido irremediavelmente contaminado pelo vírus do Rock, porém jamais introduzido devidamente aos clássicos, ouvir trechinhos daquelas bandas foi algo maravilhoso. Mas Velvet Underground foi o que marcou mais profundamente... Um dos maiores momentos prazerosos e badass da vida. 

Aqueles timbres, aquela simplicidade potente, aquele ar sarcástico e confessional e cronista... aquele outro lado da humanidade, que não o "Love" ou o "Baby" ou o "Darling". Eu sentia falta de me perceber mais representado, mais compreendido, de ouvir algum som mais conectado com o que sempre observei dia a dia: as ruas, a gente, os dilemas, a sociedade zumbi. Como um bluesman maldito, ele, Lou Reed, chegou aos meus ouvidos me dizendo "Eu te entendo". 

Na primeira volta pra casa após descobrir Velvet, meu caminhar era de quem gostaria de ter um número suficiente de amigos e montar uma banda como aquela. Na primeira volta pra casa após descobrir Velvet, um pôr do sol lindo e triste e a lembrança instantânea e duradoura de Who Loves The Sun

Cerca de um ano se passou e vieram minhas passagens por lan houses. Uma das primeiras bandas que pus pra tocar logo que achei a Rádio Uol: Velvet Underground. Beginnig To See The Light, Pale Blue Eyes, Some Kinda Love, Jesus, What Goes On... Eu apertava play para curtir Yes, Neil Young, Sex Pistols... mas a minha empolgação com o lado cru e anormal do Rock 'n' Roll, as minhas desolações, os meus desenganos, os meus instintos, as minhas raivas e a minha solidão sempre me levavam de volta ao Velvet, à banda que influenciou ou tornou possíveis inúmeras discografias e carreiras fantásticas. 

Lou, ao lado de Dylan, até hoje me causa fascínio pela completude dentro do mínimo, do contido. O homem que compôs Hurricane, Blowin' in The Wind, Joe... é basicamente um singelo cantador portando um violãozinho e uma gaita; o homem que deu vida a Walk On The Wild Side e a colocou nas FMs – em tempos de uma hipocrisia social assassina muito mais dura do que a atual – era basicamente um contador de histórias com uma guitarra nas mãos. Como pode caber tanto mundo, tanta crítica, tanto retrato, tanta potência em duas fórmulas tão simples? Isso tudo permanece alvo da minha admiração, do meu imenso respeito. 

Como paixão que se transforma em amor e se solidifica, minha relação com a obra de Lou cresceu, ao longo dos anos, e chegou à discografia solo. Passei por diversas fases, de Sally Can't Dance até o provocador e absurdo Metal Machine Music (100% ruídos), atravessando Berlin, Songs For Drella (sua parceria com o amigo John Cale) e New Sensations, sempre aportando em Transformer

De uma maneira quase mágica, de uma forma que qualquer um poderia ter feito mas não fez... Lou Reed, suas composições e seu jeito de inserir realidade e arte no Rock trouxeram luz ao submundo, deram voz a centenas que quase nunca tiveram a chance de se expressar – como Rachel, transsexual com a qual ele viveu durante uns três anos – e forma a cenas belas ou rústicas da vida caótica urbana. Nova York tornou-se apenas a desculpa, a metáfora e o ponto de partida sobre todo e qualquer lugar com assuntos, gente e questões semelhantes. As crônicas de Lou demonstram como até mesmo politicamente ele teve importância.

David Bowie foi contagiado por ele e o considerou um mestre; a Nova Hollywood foi igualmente atingida; Velvet Underground & Nico (1967) é ainda um dos mais inovadores e relevantes álbuns da Música, um pilar do Alternativo e de praticamente 10 entre 10 bandas do lado outsider dos anos 70, 80, 90... 

Foi de repente. Dia 27 de outubro de 2013, uma tarde morna de domingo. Eu organizando e publicando uma postagem sobre Beatles... e, na volta, "Morreu Lou Reed" por todos os lados da Web. Eu só cri quando horas já haviam se passado e surgiu uma confirmação de seu agente, quando constatei que não deixariam uma piada sem graça crescer daquela maneira. Há meses ele tinha problemas sérios no fígado, provavelmente a consequência amarga de suas experiências com drogas e também a causa de sua morte.

Cale disse a um jornal que perdeu um amigo de escola... e foi assim pra mim. Eu soube não somente da partida de um cara que admirava profundamente, mas da viagem final de um importantíssimo companheiro, de um homem que jamais teve ideia de que foi íntimo meu... mas que foi um parceiro fundamental durante diversos momentos melancólicos da minha adolescência, um tradutor de vários dos meus sentimentos, um dos caras que seguraram minha barra, me divertiram, me deram gás, me fizeram esquecer. 

Minha personalidade rocker deve muito a Lou Reed. Foi impossível reouvir Perfect Day, Sunday Morning e não desabar, chorar...

Crazy Feeling... 

Mas eu sinto que ele diria que o jogo deve continuar, deve seguir... que deixem o Animal do Rock 'n' Roll ir embora e fiquem com o Rock 'n' Roll do Animal. Diria "It's allright now". 

Personalidade difícil é algo que qualquer pessoa pode ter; uma vida conturbada, também. Eu não julgo Reed. Foi um prazer inexplicável tê-lo conhecido décadas após sua era de ouro – reconhecida tardiamente... mas reconhecida – e ainda vê-lo tocar, fazer novos discos... 

Em seu ouvido eu teria dito baixinho um pensamento que vai se fortalecer mais e mais: "Obrigado. Muito obrigado. Eu te amo.". 

                               

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